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PARTICIPAÇÃO DO ADVOGADO NO INQUÉRITO POLICIAL

GARANTIA DE UM PROCESSO MAIS EQUILIBRADO E JUSTO.
LEONARDO ACCIOLY


O equilíbrio entre as partes no processo penal é uma garantia derivada diretamente do direito à ampla defesa e ao contraditório, ambos previstos no Art 5º da Constituição Federal. È um dos pilares da democracia brasileira e uma defesa contra o arbítrio estatal.

No entanto, tal equilíbrio tem sido ameaçado pelas consequências do alargamento das funções do Ministério Público que, atualmente fundado em decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, passou a poder investigar de maneira mais ampla e ter a possibilidade de presidir procedimentos investigatórios.

Obviamente o MP não poderia estar proibido de promover a produção de prova, da mesma forma que é permitido ao acusado fazê-lo em seu favor. Ambos na condição de partes podem e devem se utilizar de todos os meios lícitos para o seu desiderato, inclusive na fase de investigação. No entanto, a necessidade de igualdade entre as partes não deveria permitir, dentro de um sistema equilibrado, que a mesma pessoa que assuma a função de condutor em um processo investigatório, titularize também a ação penal acusatória.

Ocorre que à parte acusada muito menos é permitido. O cidadão, na fase investigatória, não possui os mesmos meios que o Parquet, que atualmente tem um papel muito mais ativo na fase pré processual do que se observava há alguns anos.

Tal concentração de poder, além de desequilibrar a relação entre acusação e defesa, torna o inquérito verdadeira prévia do processo judicial, com a grande diferença de não propiciar ao acusado a possibilidade de contraditar as razões antecipadas pelo órgão ministerial.

Atualmente, não raras são as notícias que denotam a clara intenção do órgão em aparelhar-se para passar a investigar quase que em tempo integral. Como exemplo, a aquisição do “Sistema Guardião”, que permite interceptar simultaneamente as comunicações de um grande número de pessoas e mostra que o Ministério Público tem sim a intenção de passar a protagonizar a atividade investigatória.

No entanto, os supostos poderes implícitos do Parquet e o mito da imparcialidade, constitucionalizados pelo Egrégio STF, nos fazem pensar que é necessário reequilibrar o jogo, dando ao cidadão instrumentos de contrapor os procedimentos investigatórios promovidos por quem tem o papel de acusar.

A falta de uma delimitação clara das atribuições institucionais de cada órgão, em um futuro próximo, levará o processo criminal a um patamar inquisitorial tamanho que o próprio Ministério Público ficará com suas funções tragadas pelo poder judiciário que tem agido muitas vezes com um ativismo incompatível com a inércia que deve pautar sua atuação.

Em razão disso, reveste-se de especial importância a aprovação de dois projetos de Lei atualmente em tramitação no Congresso Nacional, ambos apresentados a pedido da OAB Nacional. São os projetos (6705/2013), apresentado pelo Deputado Arnaldo Faria de Sá e o projeto de Lei (468/2013), apresentado pelo senador Romero Jucá, ambos estabelecendo a obrigatoriedade da presença do advogado no inquérito policial.

Os dois projetos visam reequilibrar as forças nos procedimentos de investigação alterando o EOAB e o Código de Processo Penal para estabelecer as seguintes mudanças : 1. O direito do advogado de obter cópias de autos de quaisquer investigações inclusive nos processos de delação premiada . 2 Assistir, sob pena de nulidade, aos seus clientes durante a apuração de infrações, podendo apresentar razões e quesitos e requerer a realização de diligências. 3. Tipificação como abuso de autoridade os desrespeitos ao amplo direito a vistas e assistência dos acusados nos procedimentos investigatórios. 4 Estabelecer a possibilidade do advogado, em defesa de seus constituintes, apresentar razões, formular quesitos e requerer qualquer diligência nos procedimentos investigatórios.

Na justificativa da apresentação do projeto no Senado o senador salienta que “ A Constituição Federal é concisa no que tange aos direitos e garantias fundamentais ao cidadão, em seu art. 5º, incisos LV e LXII, quando salienta que “em processo judicial ou administrativo, os acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

A proposta em tela visa dar concretude a estas garantias previstas pela Carta Magna, e exequibilidade do exercício da advocacia no curso das investigações, evitando indiciamentos equivocados, que poderiam ser evitados com a prévia oitiva dos investigados, os quais poderão contribuir com a investigação requerendo diligências.”

De fato, como salientou o Senador proponente, o direito à ampla defesa não pode sofrer amarras e limitações, especialmente por práticas ilegais muitas vezes chanceladas pela própria autoridade judiciária, e que violam o princípio da estrita legalidade dos atos da administração.

Tais limitações são evidentes, especialmente em certas modalidades de investigação como nos casos do processos de colaboração premiada, onde os depoimentos são verdadeiramente omitidos dos investigados sob o argumento da necessidade de se resguardar o sigilo necessário ao procedimento, que obviamente não pode ser imposto aos defensores do acusado.

A Lei nº 12.850/2013, na redação do seu Art 7º prevê:

“Art. 7º O pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto.

(...)

§ 2º O acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.

§ 3º O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, observado o disposto no art. 5º.”

Observa-se que o dispositivo reproduzido confere ao magistrado a discricionariedade para avaliar quais os elementos de prova que dizem “respeito ao direito de defesa” na medida em que o acesso aos autos e atos judiciais deve ser precedido de autorização judicial. Ocorre que todo e qualquer elemento existente nos autos pode ser importante para a plena defesa do acusado. Não pode então a autoridade ter o poder de escolha sobre o direito do defensor de obter acesso irrestrito a todos os elementos da investigação, ressalvadas às diligências em andamento.

A discussão sobre o tema não mais seria sequer necessária, haja vista a edição da súmula vinculante 14 do STF, que dispõe ser “direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

Também por força da cláusula pétrea inserta em nossa Constituição no Art 5º, LV, em conjugação com os demais dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que tratam da essencialidade da atividade do advogado (Art. 133 da Constituição e no inciso XIV do Art 7º do EOAB), não se poderia admitir que as limitações impostas pela Lei nº 12.850/2013 sejam aplicadas aos defensores, que munidos de procuração, devem ter direito ao acesso amplo e irrestrito dos autos, inclusive os sigilosos.

No entanto, a aparente antinomia entre as normas ou inconstitucionalidade do Art 7º da Lei 12.850, ficaria superada pela nova redação proposta ao inciso XIV artigo 7º do EOAB pelo projeto de Lei 468/2013:

“Art. 7º São direitos do advogado (...)

XIV – examinar em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, incluindo os de colaboração premiada já instrumentalizada, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em mídia física ou digital.”

Também a alteração proposta pelo projeto de Lei 6705/2013, muito embora não traga expressamente a possibilidade de acesso aos autos nos processos de colaboração premiada, igualmente prescreve o amplo acesso a todo qualquer procedimento investigatório:

“Art. 7º São direitos do advogado (...)

XIV - examinar em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”.

A modificação legal proposta também se revela importante na medida que não trata apenas do acesso do advogado aos autos dos inquéritos policiais mas de todo e qualquer o processo de investigação, inclusive aos procedimentos investigatórios criminais presididos pelo Ministério Público, que igualmente são instruídos muitas vezes sob o manto do sigilo imposto, inclusive, aos defensores.

Outra mudança substancial constante das propostas é a possibilidade do advogado apresentar suas razões ainda na fase de investigação. Tal possibilidade é expressamente prevista em ambos os projetos, sendo que, no PLS 468, para este fim, se propõe a alteração tanto do EOAB quando do CPP.1

Tal mudança se mostra essencial em razão da preservação do sistema acusatório adotado pelo processo penal brasileiro que confere a pessoas distintas a função de investigar, acusar, defender e julgar.

Conforme frisa Mirabete:

“No Brasil, a Constituição Federal assegura o sistema acusatório no processo penal. Estabelece o ‘contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes’ (art. 5º, LV); a ação penal pública é promovida, privativamente, pelo Ministério Público (art. 129, I), embora se assegure ao ofendido o direito à ação privada subsidiária (art. 5º, LIX); a autoridade julgadora competente- juiz constitucional ou juiz natural (art. 5º, LV, 92 e 126); há publicidade dos atos processuais, podendo a lei restringi-la apenas quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (art. 5º, LX e 93, IX)”2

Tal sistema é assim definido por Fernando Capez:

“O sistema acusatório pressupõe as seguintes garantias constitucionais: da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV), do devido processo legal (art. 5º, LIV), da garantia do acesso à justiça (art. 5º,LXXIV), da garantia do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII), do tratamento paritário das partes (art. 5º, caput e I), da ampla defesa (art. 5º, LV, LVI e LXII), da publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios (art. 93, IX) e da presunção da inocência (art. 5º, LVII)”3.

Infelizmente nosso processo, tanto pelas mudanças legislativas (como as promovidas pela Lei nº 12.850/2013), quanto pela interpretação populista da legislação penal pelo judiciário, tem, cada vez mais, se aproximado do sistema inquisitório, incompatível com uma sociedade democrática e que dá poderes ilimitados ao magistrado para investigar, acusar e julgar.

Neste panorama a possibilidade da parte, através de seus advogados, de poder apresentar suas razões nos procedimentos de investigação, vai exatamente no sentido de reagir à tal nociva transformação que se tem observado no processo penal brasileiro.

Equilibra o jogo, e põe o direito de defesa em pé de igualdade com a necessidade de preservação da ordem e segurança pública.

Também a possibilidade da solicitação pelo advogado da realização diligências àquele que conduz a investigação é um enorme avanço.

Não resta a menor dúvida que, na prática, o inquérito ou qualquer outro procedimento de investigação, não mais pode ser considerado uma peça informativa dada a hibridez do papel dos que presidem e conduzem a fase inquisitorial. Nada mais justo então do que equiparar o direito da parte ao do Ministério Público na possibilidade de produção de provas.

Os procedimentos investigatórios são instrumentos que balizam a ação estatal, que deve ser direcionada sempre ao interesse público. Nesta ideia está contida também a ausência de necessidade de se movimentar a máquina judiciária, em casos onde não existem elementos muitas vezes sequer para a apresentação da denúncia. O amplo direito a diligências vem no sentido, portanto, de racionalizar o processo preservando seu caráter instrumental.

Uma questão que deverá ser, no entanto, respondida é o alcance do poder da autoridade que preside a investigação para deferir ou indeferir as diligências requeridas.

Ambos os projetos tipificam criminalmente a conduta da autoridade que descumpre tanto o dever de dar vistas irrestritas aos autos do inquérito, quanto a possibilidade de apresentação de quesitos e razões nos procedimentos investigativos4 5.

Forçoso entender, desta forma, que a obrigação da realização de diligências não se constitui como uma mera faculdade da autoridade policial ou do parquet nos casos em que preside procedimentos de investigação. O projeto, ao tipificar como abuso de autoridade a infringência de tal obrigação obriga a autoridade e deferir tais pedidos sempre que importantes para a o exercício ao direito de defesa.

Obviamente como todo direito ou garantia, o seu exercício deve ser temperado pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Não pode servir de instrumento de procrastinação da investigação nem tampouco de chicanas processuais.

Desta forma, em simetria com o processo judicial, o indeferimento do pedido de diligência deve ser no mínimo motivado, tanto para revelar o eventual interesse do causídico de tumultuar a investigação quanto, igualmente, para possibilitar recorribilidade do ato desprovido de fundamentação legal e violador ao direito de defesa do cidadão e as prorrogativas de seu defensor.

Por fim à guisa de conclusão, louva-se a importante iniciativa da OAB na proposição de tão importantes projetos. Exerce assim o seu importante papel de sempre promover os princípios

mais nobres de nossa republica. O respeito aos postulados do contraditório e ampla defesa só se materializam com instrumentos efetivos para seu exercício, razão pela qual o reequilíbrio das forças nos procedimentos investigatórios contidos nas proposições se revela tão essencial.

Leonardo Accioly